Frei Simão

- José Lencastre -

1939

 

índice

 
 
 
 

1 - 2 - 3 - 4

 

Em dias calmos, subia ao cume do monte, ao Colcurínho, e pesquisava onde tinha sido a pequena edícula que teve a imagem ali encontrada. Conseguiu encontrar a torça da porta com a era de 1326. Depois sentava-se sobre uma pedra e alongava a vista para os confins da Serra do Açor ficava-se tempos esquecidos a meditar, só despertando quando o sol tombava para o poente. Voltava ao seu albergue, e assim passava os dias este homem que todos tinham por santo. E ninguém penetrava naquele íntimo, fechado para o mundo. Passava horas na capela, e todos os dias se fechava na sacristia, donde saía com uma pequena saca de terra, debaixo da garnacha, que ia despejar longe da capela. Era a sepultura que êle andava abrindo como os anacoretas. Ainda hoje existe, mas sem nunca ter quem a ocupasse.


Fora das suas ocupações, vinha espairecer para a lombada do monte, a idealizar a Via-Sacra, com figuras que mostrassem aos visitantes a via dolorosa do Senhor.


Vinham as romarias e êle não saía do confessionário a aconselhar, a confortar, a absolver. E nem tempo tinha de comer as suas frugais refeições!


Um dia ajoelhou ao seu confessionário, um penitente que vinha dos confins do reino, acicatado pelos remorsos que lhe martirizavam a alma. A confissão durava há muito, até que o padre, a certa altura, levantou-se pálido, cambaleante, vindo prostrar-se ante a Virgem e, ali, de rosto no supedâneo do altar, ficou muito tempo, balbuciando palavras ininteligíveis e chorando. Repararam os romeiros naquele homem penitente, e ajoelharam também, pedindo a Nossa Senhora consôlo para aquele triste.


Passado tempo foi ao seu quarto. Ali, sentou-se a escreveu, escreveu até noite fechada e, no fim, escondeu o que tinha escrito no segrêdo de uma gaveta e enfardelando, alguma roupa e tomando o bordão com que ali chegara, saiu e desapareceu, torneando o monte. Ninguém mais o viu, nem mais houve notícias do, padre Simão, que engrandeceu o santuário com obras de arte e acudiu a tanta alma aflita.


Aquele homem foi um mistério para todos, de que hoje só resta a tradição. Eu tive a felicidade de desvendar este mistério. Andando a desmanchar em Aldeia uma velha mesa, encontrei em um esconderijo ã história de frei Simão, escrita por êle próprio. Tinha manchas que eu julgo serem de lágrimas e a escrita aí não se pode ler.


Este homem era filho segundo de um fidalgo da Beira Baixa. De menino o destinaram para frade e assim que teve use da razão foi internado no convento próximo aefez os estudos para cantar Missa. Depois de todas as ordens, veio a sua casa passar uns dias e despedir-se do mundo.

 

Frequentava o solar de seus pais, uma menina, filha de um fidalgo seu vizinho. A donzela conversou muito com o futuro frade a abriu-lhe o seu coração. Queriam-na casar com um primo, senhor de muitas terras, que passava a vida nos montes, entre caçadores a galgos, nas feiras entre cavalos e o resto que se não diz. Temperamento sentimental, não gostava daquela existência e por isso negava-se ao casamento, preferindo antes a clausura. Queria uma alma que a entendesse. Havia nas suas palavras uma tristeza tal, uma desesperança, que comoveram o padre. E aquelas duas almas entenderam-se e ajustaram um noivado místico, aprazando-se para se reunirem no Céu.


A pobre menina pediu ao pai que queria ir para um convento, a que êle respondeu, barafustando, que havia de casar com o primo, custasse o que custasse. E havia nos seus modos e nas suas falas, uma vontade inabalável. Lançou-se-lhe aos pés debulhada em lágrimas, pedindo que lhe fizesse aquela vontade, por alma de sua mãi.


- Parece-me que andam por aí conselhos do fradinho Simão, pois êle saberá com quem se meteu !...


E deixou a pobre donzela arrebatadamente, dirigindo impropérios e batendo o pé no sobrado.


Quando o primo apareceu à noite contando proezas da caçada, o pai de Branca, chamou-o a disse-lhe


- Esse Simão, esse frade mundano, meteu umas loas na cabeça de Branca a por isso é preciso liquidá-lo.


-Vamos a êle, primo... Mando-o arcabuzar pelo "Facadas" a verá que êle não torna a piar.

 

A criada de quarto da menina, sua amiga dedicada, ouviu, de traz do reposteiro, a conversa, e veio dizer tudo à ama.. Como sabia dos maus instintos dos dois, fechou-se no quarto a chorar e a lastimar, intimamente, a sorte do infeliz. Quando acalmou as lágrimas, escreveu um lacónico bilhete ao frade:

 

«Fuja... Querem matá-lo... No Céu nos veremos...B.»

 

E entregou-o à criada, a sua melhor amiga, depois, de sua mãi morrer.

 

 


< anterior | 1 - 2 - 3 - 4 | seguinte >